O Ocidente, a Liberdade e Outras Opiniões
Esse rasto de violência e abuso praticados em nome da liberdade e da democracia como valores de um ocidente intemporal e superior, conduz-nos ao equívoco central desta ideologia hierarquizadora das civilizações: o da sua relação com a liberdade e a democracia.
Artigo de Fernando Rosas no Público de 22 de Fevereiro de 2006. prefix = v ns = "urn:schemas-microsoft-com:vml" />
As notícias que nas últimas semanas se sucederam sobre a prática de torturas, tratamentos desumanos e violências de toda a ordem por parte das forças anglo-americanas no Iraque, no Afeganistão, em Guantanamo ou nas cadeias secretas da CIA, instalaram uma crise sem remédio no estafado discurso da superioridade civilizacional, uma justificação retomada de pretéritas ideologias imperiais do ocidente para legitimar a presente política de guerra e de agressão da administração dos EUA. Civilização ou Barbárie? A ascensão européia como pólo dominador no mundo impôs a dicotomia civilização ou barbárie para tratar de justificar seu poder e a colonização da periferia do sistema. Apropriando-se do termo civilização e desqualificando as civilizações mais antigas do mundo, tachando-as de bárbaras , as potências coloniais procuraram legitimar sua dominação e justificar os maiores massacres da história da humanidade cometidos em nome dessa categoria apropriada pelos colonizadores. Foi em nome desse projeto civilizatório que foram dizimadas as populações indígenas das Américas. Foi sob esse nome que se deu o tráfico de escravos. Juntos, esses massacres representam a pior matança da história da humanidade. E foram elas que marcaram a chegada do capitalismo ao nosso continente. Mas se tomamos episódios mais recentes, que marcaram o século passado, as duas guerras mundiais, conflitos inter-imperialistas, produziram a maior quantidade de mortos que o século conheceu, resultado das disputas entre as potências imperialistas para redividir o mundo entre elas, incluídos os regimes fascista, nazista, franquista e salazarista. Em nome de que civilização pode falar o ocidente capitalista? Com que direito tratam de desqualificar as outras civilizações como bárbaras? De qualquer forma, em sua versão eurocêntrica e, agora, do american way of life, tornaram hegemônico esse discurso da civilização contra a barbárie. Edward Said já desmistificou esse enfoque, ao denunciar o orientalismo como simplesmente o outro, o universo que não é o ocidental dominante. Resta agora destacar o caráter racista dessa visão de mundo. Um filósofo midiático na era da mídia, esta projeta falsos filósofos -, Alain Finkelkraut já pregou que o anti-racismo será o anti-comunismo do século XXI. Isto é, o inimigo da civilização ocidental é o anti-racismo. É uma afirmação audaz, mas honesta. Porque a hegemonia cultural da civilização ocidental se construiu na base da superioridade racial dos brancos. Nenhum instrumento foi tão importante para essa hegemonia do que Hollywood. E os arquétipos de Hollywood têm um profundo caráter racista. Os filmes de cow-boy ou de far-west apresentavam os indígenas, massacrados pelos colonizadores, como bandidos, enquanto John Wayne e seus colegas, como mocinhos. Por sua vez, os filmes de guerra dos Estados Unidos são sempre contra outras raças asiáticos (japoneses, coreanos), africanos, árabes. Pouparam sempre o país que promoveu a maior limpeza étnica da história da humanidade os alemães, contra os judeus, os ciganos, os socialistas e comunistas. O único filme de peso que atacou frontalmente o nazismo O grande ditador -, feito por Chaplin, causou tanto mal-estar, que seu diretor teve que abandonar os Estados Unidos antes mesmo da estréia do filme. Sabe-se como o cinema reescreve a história e deixa profundas marcas no imaginário das pessoas. Hollywood inaugurou uma série de filmes que tentavam reescrever a história da guerra do Vietnã, com os soldados dos Estados Unidos torturados pelos vietnamitas. Mais recentemente, um filme de guerra estadunidense fez as tropas desse país protagonizarem uma batalha que na verdade foi protagonizada pelos britânicos. Muito pior é a consolidação dos africanos, asiáticos, árabes como bárbaros. Eu diria mais do que isso é um crime, quase uma incitação à discriminação e à violência, quando não ao extermínio. Uma civilização que discrimina dessa forma - que tem na sua conta o extermínio dos povos indígenas nas Américas, o crime tão brutal de trazer à força milhões de negros, arrancados do seu mundo, para trabalhar como escravos a fim de produzir riquezas para os colonizadores brancos, e o holocausto, que previa friamente a extinção de uma raça, com aproveitamento industrial de todos os que se pudesse aproveitar economicamente de seus cadáveres - pode ser chamada de civilizada? Pode considerar aos outros como bárbaros? Autor do livro A Vingança da História, Editora Boitempo, é membro do Conselho Cultural e Científico do Instituto da Cultura Árabe .
Foram os filmes mostrando soldados britânicos a sovar brutalmente, no interior de um aquartelamento, três adolescentes iraquianos capturados numa manifestação de rua contra os ocupantes. Foram as novas e ainda mais dilacerantes imagens das torturas e assassinatos praticados por elementos das forças armadas dos EUA na prisão de Algharib, no Iraque (que não levaram ao banco dos réus nem um só dos mandantes hierárquicos dos torcionários). Foi, há dias, a divulgação publica do relatório da Comissão dos Direitos Humanos da ONU sobre Guantanamo, assinado por cinco peritos independentes designados em 2004 para acompanhar aquele centro de detenção, a quem as autoridades norte-americanas recusaram a possibilidade de visitar os prisioneiros ou de falar com eles em privado.
O relatório é devastador para o governo de Washington: denuncia como equivalentes à tortura várias práticas de interrogatório reconhecidamente executadas em Guantanamo contra os presos, pede o encerramento do campo e a apresentação dos presos a julgamento. Finalmente, numa decisão histórica, o Parlamento Europeu aprovou no passado dia 16 de Fevereiro, com um único voto contra e uma só abstenção, uma moção a favor do encerramento do campo de Guantanamo e do tratamento dos detidos de acordo com a legislação internacional sobre os direitos humanos.
Esse rasto de violência e abuso praticados em nome da liberdade e da democracia como valores de um ocidente intemporal e superior, conduz-nos ao equívoco central desta ideologia hierarquizadora das civilizações: o da sua relação com a liberdade e a democracia.
Desde logo, porque até à II Guerra Mundial, o discurso sobre a superioridade do ocidente, da civilização europeia, ou cristã, ou das várias raças que se candidatavam a interpretá-la, nunca teve nada a ver com a liberdade, a democracia e ainda menos com a justiça social. Essa mística organicista e anti-racionalista, esse darwinismo social e civilizacional descambou no horror do nazismo, nos fascismos ou nesse cruzar de sulcos de violência e exações inomináveis que foi o moderno colonialismo europeu. Em nome do ocidente, Hitler atacou a URSS em 1941, em nome da superioridade civilizacional do ocidente se saqueou e dominou impiedosamente a África e a Ásia, sobretudo desde os finais do século XIX.
Ao contrário, os paladinos da democracia, do antifascismo, da revolução social, da autodeterminação, surgiam como suspeitos cosmopolitas e internacionalistas, desde que a Revolução Francesa proclamara os direitos do homem e do cidadão como panaceia universal, confirmada e formalizada no pós-guerra pelas Nações Unidas vitoriosas do nazifascismo. Isto é, a liberdade e os direitos fundamentais como conquista e como batalha da moderna condição humana e não de nenhuma raça ou civilização superior.
É certo que o ocidente, ou seja, o mundo capitalista sobrevivente da II Guerra Mundial, se redefiniu e reencontrou em torno da nova liderança dos EUA no quadro da guerra fria. Ameaçado pela subversão comunista e beneficiando do mais prolongado período de prosperidade que se conhecera, o ocidente aceitou profundas reformas políticas, económicas e sociais no capitalismo arvorando-se em campeão da liberdade e do wellfare state face ao bloco soviético. Mas, sobretudo fora de portas, teve poucas lições a dar: a sucessão de terríveis guerras coloniais (da Indochina às colónias portuguesas, passando pela Malásia ou a Argélia) com que os velhos impérios europeus procuraram esmagar, sem excesso de estados de alma liberais, as lutas pela independência nacional dos povos colonizados; os crimes sem castigo cometidos pelos EUA na guerra do Vietname; o apoio de Washington ao advento das sanguinárias ditaduras militares da América Latina nos anos 60 e 70 com o fito de aniquilar as guerrilhas revolucionárias e os movimentos progressistas na América Central e do Sul, indicavam que o modelo das democracias com (desigual) prosperidade não se destinava a ser partilhado pelos países do que então se chamou Terceiro Mundo. E que o bem-estar de uns, em boa medida, assentava na perpetuação da pobreza e da iniquidade nos outros.
A mistificação de um ocidente como essência da liberdade e do bem estar universais, um dos argumentos centrais da guerra fria, só pode consolidar-se ideologicamente dos anos 80 para os 90 do século passado, só pode, até, transformar-se numa espécie de pensamento único devido à implosão histórica da sua alternativa teórica, o mundo do chamado socialismo real, afogado nos destroços da sua burocracia exploradora e opressiva.
Mas o capitalismo pós-queda-do-muro de Berlim, isto é, o capitalismo da época da globalização e a sua nova e solitária hegemonia imperial rapidamente dispensaram essa velha história de um ocidente da liberdade e da abundância ao alcance de todos. Num duplo sentido. Reviram-na como modelo retórico de exportação, mas até como sistema político e social de preservação doméstica nos países do centro do sistema. A superioridade do ocidente retomou os seus direitos como discurso xenófobo e racista legitimador da guerra de civilizações, da guerra aos bárbaros ou aos terroristas, uma guerra sem fim expressão do novo expansionismo imperial. Simultaneamente, em nome dos imperativos da guerra permanente iniciou-se o esvaziamento e a negação do intocável Estado de Direito ocidental, como esta à vista. E em nome da nova lógica de acumulação do capitalismo global lançou-se o ataque sistemático e a destruição das principais conquistas da democracia social.
O ocidente da globalização capitalista mudou de cara e de argumentos. É um campo contraditório e complexo sob a supremacia norte-americana, com a perspectiva da guerra contínua e da subversão do direito internacional em fundo e a negação progressiva mas inexorável da democracia política e social como programa.
Resta o outro lado do mundo. A globalização outra que vai unindo num laço visível e invisível de solidariedade e mobilização o operário chinês sobreexplorado, as meninas prostituídas da Tailândia, a mulher desempregada da Europa, o emigrante africano sem direitos, o camponês sem terra da América Latina, o negro destinado à pobreza dos subúrbios de Los Angeles, os fulminados pelas excomunhões dos fundamentalismos islâmicos ou evangélicos, as vítimas de todos os racismos e xenofobias, os condenados da terra. E esse é o terreno internacional e cosmopolita por excelência dos combates a vir, herdeiro e reconstrutor dos grandes projectos emancipatórios, ou seja, das grandes heresias da nossa idade.
Não, não creio que o futuro brote de um choque de civilizações, ainda que os povos se deixem temporariamente arrastar para essa insinia. Acho muito simplesmente que Rosa Luxemburgo tinha razão: o futuro será o socialismo ou a barbárie
Por Emir Sader
A hegemonia ocidental trouxe consigo uma história reescrita. Quem ganha não somente leva o botim, mas também o direito de reinterpretar o mundo a partir da sua vitória. O poder é o poder das armas e do dinheiro, mas também o poder da palavra. Conforme Walter Benjamin, nessas condições, nem o passado está seguro, ele é abalado permanentemente pela ótica dos novos vencedores.
Emir Sader , sociólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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